Per Aspera Ad Astra: A história do mais querido do mundo (Capítulo I)
Salve, Nação!
Com a autorização do Filipe Martins do belíssimo blog Anarcorinthians começo a postar aqui hoje a coluna "Per Aspera ad Astra", escrita originalmente para o blog da Yule e que conta a história do nosso amado Timão desde aquela reunião sob a luz do lampião em 1910.
Os textos são longos, mas de uma qualidade temática e descritiva que faz valer a pena cada palavra.
“Per Aspera Ad Astra”
Pela árdua Luta, o Corinthians alçou as estrelas
Por Filipe Martins Gonçalves, Corinthiano de 4ª Geração.
Ou como foi plantada a semente do Time do Povo, e como já era tudo o que é antes mesmo de ser um time ou um clube.
Tal qual uma semente que brotou, cresceu e se fortaleceu, e após tantos processos de crescimento se tornou uma gigantesca árvore; assim é o Corinthians.
Não é possível fazer uma ligação entre uma pequena semente e uma grandiosa árvore, sem compreender os passos do seu desenvolvimento e de sua história.
Neste momento, que tentaremos resgatar aqui, como uma semente brotando, não se pode conceber ainda o Corinthians Paulista.
São apenas os genes, o lugar onde foi plantado, e o alimento que fortaleceu esta árvore, que estão colocados neste grande cenário.
Porém, a idéia já era concebida.
E a maior prova que podemos ter disso é que, mesmo tendo começado como Utopia, hoje é um arrebatador Colosso. E isso nem os anticorintianos se atrevem a negar - muito pelo contrário.
1910, o ano do Cometa
É crença antiga aquela que diz que, quando um cometa passa no céu, algo muito importante vai acontecer.
Quando um cometa passa no céu é porque o mundo vai mudar.
E naquele mês de maio de 1910 essas crendices estavam em polvorosa.
A cauda do cometa, como uma lâmina afiada, iria partir a terra em pedaços!
Para muitos, o Halley seria como um justiceiro de Deus.
Fato é que o cometa passou a menos de 23 milhões de quilômetros do nosso planeta, e pelo mundo todo se viu o rastro daquele cometa no céu. Ele resplandeceu durante alguns dias. Depois se foi, e o mundo voltou a ser o que era antes…
Ah, não voltou, não.
Um grupo de operários, nas noites sob a luz da lua e do cometa, se reunia no areal do Bom Retiro.
O areal era um desses bancos de areia onde o Tietê se debruçava com suas águas na época de chuva. Em maio, porém, era uma prainha espaçosa para o povo olhar o rastro fulgurante do Cometa.
E eles pensavam e falavam no futebol. E discutiam, em tom de brincadeira, de sonho, de aspiração pura, com a mesma força de um devaneio, sobre criar um clube.
Não só um time. Um clube de verdade, para enfrentar os clubes de gente graúda, esnobe, que jogava bola apenas em seus campinhos, onde o rio não chegava; onde eles não chegavam. Para brilhar e iluminar tudo como a luz do Cometa.
Eles não eram “graúdos”. Eram “miúdos” - socialmente e economicamente, apenas. Pois a partir dessas conversas, à luz do rastro do cometa, naquele areal, os Cinco Primeiros se tornaram gigantes. Pois o Corinthians se tornou justamente tudo isso…
E então eles fizeram todo mundo saber que o clube aconteceria. Em pouco tempo a turma já era grande. Crescia a cada dia no intuito de participar do clube. A brincadeira começava a acontecer de verdade. Uma utopia brincava de querer ser realidade.
A idéia ficou sendo gestada, construída, todos os nós de uma grande rede foram sendo dados durante os meses seguintes, até que fosse decidida a criação do novo clube, sob a luz do lampião a gás da atual Rua José Paulino (então Rua dos Imigrantes) com a Rua Cônego Martins, que foi o ponto de encontro desses fundadores, para falarem sobre o clube durante todos esses meses.
Calhou de ser tudo decidido, definitivamente, na noite de 1º de setembro, como reza a Tradição.
Anselmo Correia, Joaquim Ambrósio, Carlos Silva, Rafael Perrone e Antônio Pereira são os pais da idéia.
Eles articularam os operários da estrada de ferro, das fábricas, do comércio, do Mercadão, e os bons jogadores dos times de várzea, que se empenhariam em construir um clube para o povo.
O Bom Retiro
Essa monstruosa metrópole em que vivemos hoje era, em 1910, uma cidade de duzentos e cinqüenta mil habitantes, com um cinturão rural e uma população que crescia vertiginosamente, principalmente nas movimentadas ruas de sua colina central.
Havia as vilas. A Freguesia de Nossa Senhora do Ó, a Freguesia de Sant´Anna, a Villa dos Pinheiros, a Penha de França, Santo Amaro, etc., chácaras aos montes, e algumas fazendas. Os rios, ribeirões, e caminhos tortuosos entrecruzavam as vilas, chácaras e fazendas.
Mas as avenidas de moderno traçado urbanístico, como a Paulista, já existiam.
O “novo” chegava, com os imigrantes e com o dinheiro do café.
As chácaras davam lugar aos vários bairros que surgiam, com traçado reto. Outros, como os “city”, aproveitavam as trilhas sinuosas.
As linhas de ferro já haviam chegado. O operariado da ferrovia era já bastante numeroso.
As fábricas também se instalavam perto das linhas de trem. E em torno das duas estações, em direção ao rio, ladeado pela Barra Funda e pelo Tamanduateí, se ergueu o bairro do Bom Retiro. Seu nome significa justamente que se tratava de um bom retiro. Havia as pensões e casas para aluguel, onde se instalavam muitos imigrantes.
Entre as estações, por onde tudo e todos chegavam, o intercâmbio cultural sempre foi intenso. Já havia o Jardim Público da Luz, onde aconteciam festas, saraus e pic-nics.
As notícias corriam pelo Bom Retiro antes mesmo de chegar à Cidade.
Foi ali que Charles Miller desceu com a bola e as regras do ‘Football’, quinze anos antes das notícias sobre o cometa chegarem - também por ali.
Funcionava naquele bairro a Escola de Farmácia, que era o que as Clínicas são hoje em dia.
Os serviços também estavam instalados no Bom Retiro. Havia barbearia, marcenaria, sapataria, alfaiataria, que recebiam demanda de todos os bairros.
Funcionava também a Escola Politécnica, em um prédio projetado e construído por Ramos de Azevedo em 1899. Entre os artesãos da equipe do importante arquiteto, estava o pintor Antônio Pereira.
Em torno das estações, nas praças da cidade, ficavam os cocheiros - e os tílburis eram o que os táxis são hoje em dia. Alexandre Magnani era um deles. Costumava esperar os passageiros na Praça da Luz, ou na Rua Mauá com o fim da Rua dos Protestantes.
O Clube do Povo
Pereira e Magnani eram bons amigos e conheciam muita gente. Bem antes da noite em que foi decidida a criação do clube, a agitação já havia chegado aos ouvidos de Alexandre Magnani, que gostava muito de Futebol. Quando não estava guiando seu coche, estava debruçado em alguma cerca, fosse na Várzea, fosse no Velódromo, acompanhando o futebol.
E antes mesmo do dia 1º de setembro, também já tinha ouvido falar do tal clube o Miguel Bataglia, senhor franzino, sempre elegante, que era alfaiate. Se Miguel sabia, seu irmão Salvador também sabia, pois era o barbeiro.
E se o barbeiro do Bom Retiro sabia, era quase fato consumado que o povo do Bom Retiro todo soubesse. E o povo de outros lugares também. A brincadeira já tinha extrapolado a turma de operários antes mesmo do dia 1º.
Um dia, reunidos, e não se sabe bem se na alfaiataria ou na barbearia, Magnani e os Bataglia falaram sobre o tal clube, pois gostavam do futebol e assistiam a muitas partidas, e aquela idéia não era propriamente nova. A grande novidade era que um grupo estava se esforçando de verdade para concretizá-la.
Na verdade, Miguel Bataglia achou engraçado o fato de aqueles moleques quererem um clube de verdade. Se eles não conseguiam manter os times que criavam a torto e a direito, e que só durava o tempo até o próximo inverno, quiçá manteriam um clube de verdade…
Magnani respondeu, no dialeto paulistano;
“Ma é um clube de verdade, Miquele. ´Magina colocá esse clube, daqui das várzea do Bó Ritiro, pra jogá co´ o Paulistano, o Athletic, o Parmera¹, o Germânia; é isso qu´eles qué!”
“E comé qu´eles vão fazê isso, Alessandre? Num tem nem d´onde tirá pr´as meia!”
“Se arruma, Miqué. A turma querendo jogá já é grandi, já… Ma andiamo vê ‘quele time, os Corinthia, que tão vindo lá da Inglaterra, che dice?”
“Si! Tão dizendo que enfiaro deiz tento lá naquele Fluminense, naqueles pó-de-arroiz. E tão vindo pra cá pra liquidá a fatura em cima do clube dos inglêis²”
Eles não perderiam esse jogo por nada. Fato é que os Embaixadores do esporte bretão deitaram e rolaram.
Num dia de semana, enquanto todos estavam no batente, Magnani e os Bataglia estavam assistindo o time da Coroa, o Embaixador do esporte bretão, o Corinthian Football Club, aplicar uma sonora goleada de “apenas” cinco a zero em um combinado dos clubes de gente bacana da paulicéia desvairada, cansados que estavam os ingleses de tantos jantares solenes, tantas homenagens, tantos chás, e viagens pra lá e pra cá…
Na tarde do dia 1º, Antônio Pereira passava na volta do serviço pela estação, e se encontrou com Magnani.
Que logo se apressou a contar que vira um time de verdade, fantástico, jogando uma bola digna dos Deuses do Futebol.
E também que havia sondado os Bataglia, que eles iriam ajudar, e que Miguel já havia dito que poderiam se reunir lá na alfaiataria dele.
Foi debaixo do lampião que os Cinco Primeiros se encontraram naquela noite, como vinham fazendo há tempos, desde quando não tiveram mais a luz do rastro do Cometa como sede. O lampião era o ponto de encontro. Solução prática, que adquiriu contornos simbólicos. E Antonio falou para todos que agora teriam um abrigo para as reuniões. Também por isso se diz que esta foi a noite da Fundação; foi a última e definitiva reunião sob a luz do lampião.
O Clube do Povo ganhava sua primeira sede “coberta”.
Foram para a alfaiataria, e ali aqueles que estavam fundando um clube de verdade fariam as próximas reuniões.
A torcida já tinha nascido, e ainda nem tinham criado o clube.
O confeiteiro do bairro, seu Desidério, estava bastante a par das discussões, e se fez presente àquela reunião do dia cinco de setembro.
E César Nunes, centro-médio do Botafogo, dono da Várzea do Carmo, time que não levava desaforo, e muitas vezes fazia o adversário carregar o desaforo a nado pelo rio Tamanduateí.
E Jorge Campbell, operário da estrada de ferro, que tinha trânsito com os ingleses, que ajudaram muito com contribuições o clube que começava; sem eles, talvez não se pudesse nem mesmo cogitar o terreno do Lenheiro. E havia quem pensasse que o novo clube fosse de ingleses…
E Felipe Aversa Valente, João da Silva, Salvador Lopomo, Emílio Lotito, Antônio Alves Nunes, Antonio Vizzone, Aristides de Oliveira, João Morino, Alfredo Teixeira…
A reunião começou com inflamados discursos acerca da necessidade de fundarem um clube com representação popular.
Todos estavam plenamente de acordo. E ficou decidido que no time prevaleceria uma ordem: quem fosse bom de bola, e não afinasse nas divididas, teria lugar no time.
A diretoria foi escolhida. Miguel Bataglia, votado e aclamado por unanimidade, aceitou a presidência. Alexandre Magnani foi seu vice. Campbell foi o tesoureiro, Valente foi o procurador, Morino o cobrador; João e Carlos da Silva, e Antônio Nunes, foram os diretores.
O terreno do Lenheiro, em frente ao Parque da Luz, seria alugado. E um mutirão deixaria ele em condições para a prática da bola. O pessoal iria aproveitar o feriado da Pátria para dar um jeito no terreno. Capinar o mato, tapar buracos, e o campo era literalmente o Terrão no início, fazer as traves de bambu.
O clube precisaria ter também um Estatuto, que não era uma brincadeira, e deixava claro que a Utopia era uma realidade. Antonio Pereira se prontificou a conversar com o Doutor José Rubião.
Mas faltava um detalhe importante; o nome do clube.
A primeira proposta foi que o clube se chamasse “Santos Dumont”, patriótica homenagem ao Pai da Aviação. Antônio Pereira propôs enaltecer outro brasileiro ilustre, “Carlos Gomes”, autor de “O Guarany”.
Poderia ter sido algum desses nomes, se o operário Joaquim Ambrósio, um dos cinco fundadores, não levantasse e pedisse a palavra.
Ele relembrou os feitos dos Embaixadores, as goleadas aplicadas sobre os times dos clubes graúdos.
Um verdadeiro fenômeno atlético!
“Nosso clube tem que ser igual aos Corinthians³. Ou isso ou nada!”, sentenciou.
Tirou um papel do bolso, com anotações. E continuou:
“Pessoal, tem um fato que acho importante de dizer… O Corinthians também foi fundado debaixo da luz de um lampião!”
Um sopro de emoção arrepiou os presentes.
Ouvia-se apenas o farfalhar das mariposas. Silêncio.
Um lampião!
Joaquim Ambrósio enxugou a testa com seu lenço. E arrematou.
“Eu sugiro que nosso clube se chame Sport Club Corinthians Paulista. Esta é a minha sugestão. Este é o meu pensamento. Quem estiver de acordo, levante o braço!”
Corinthians…
Todas as mãos ergueram-se no ar, em gesto de júbilo. Estava escolhido o nome do Clube do Povo.
A primeira vaquinha possibilitou a compra da primeira bola, de capotão. Aconteceu a peneira para avaliar quem jogaria no 1º, no 2º e no 3º quadros. Foi adquirido um jogo de camisas brancas, com gola e punhos pretos.
Sacos de farinha, arrumados com os saqueiros espanhóis do Mercadão, se transformaram em calções (que eram, portanto, beges).
A espanholada sangue quente do Brás passava para os lados Corinthianos e, de uma hora pra outra, o Corinthians ultrapassava os limites do Bom Retiro.
Na Lapa começou sua vida no Futebol. Já em crise, pois a precariedade era muita para quem queria ser grande.
E time de várzea não treina, joga. Com a cara e a coragem, os Corinthianos foram jogar o primeiro jogo da história do novo clube. E logo com um dos melhores da Várzea na época, o União.
Uma derrota simples - não poderia ser outro o resultado. Um jogo duríssimo, mas sem brigas, um a zero leal.
Aquela camisa branca voltaria à luta alguns dias depois, vencendo por dois a zero o Estrela Polar, time brigador. Luiz Fabi marcou o primeiro gol da vida do Corinthians, e Jorge Campbell marcou o segundo.
Dali em diante, o Time do Povo fez séries invictas, com direito a muita cervejada com churrasco em frente ao Parque, e muito rojão no ar, pra comemorar.
Tornou-se o Galo Brigador da Várzea.
A rigor, time de várzea, clube de miúdos, operários, carvoeiros, não poderia ter outra pretensão que não fosse brincar de bola pelas Várzeas.
O Corinthians foi o clube que pôs fim a isso, desde o momento em que a existência do Time do Povo passou a ser um fato.
E a História segue…
Notas
¹Esse “Parmera” é a Associação Athletica das Palmeiras, clube que tinha sua sede onde hoje se localiza boa parte do bairro de Santa Cecília, não se pode confundir com a Sociedade Esportiva, outrora Palestra Italia. Até porque a “Parmera” original era preta e branca.
²”Clube dos ingleses” é o apelido do SPAC, o São Paulo Athletic Club, fundado para a prática de cricket, além do futebol, pelo próprio Charles Miller e pela colônia inglesa. E portanto nada tem a ver com esse atual.
³”Os Corinthians” foi como a imprensa brasileira “batizou” o Corinthian. Imaginava-se que cada um dos jogadores era um “Corinthian”, que em português se diz “Corinthiano”. Era o time dos “os Corinthianos”, portanto, na lógica da imprensa da época, e que ficou na boca do povo. Por isso o ’s’ do Corinthians Paulista.
OBSERVAÇÃO IMPORTANTE
Essa versão da História foi inspirada em diversas passagens do livro “Coração Corinthiano”, de Lourenço Diaféria, projeto da Fundação Nestlé de Cultura e impresso em 1992.
Mas também é inspirada em histórias que eu ouvia de meu pai, que ouviu de Antônio de Almeida, como o próprio Diaféria, e que estão concatenadas nesse texto.
Fato é que tudo isto estava na memória do Seu Toninho, uma pessoa mais que fora de série, que meu pai teve a honra de conhecer e a quem tive a honra de ser apresentado quando criança.
Por dever e merecimento, tem de constar aqui que o autor real desta versão é Antônio de Almeida.
O Corinthians tem seus anjos-da-guarda. Toninho foi um deles. Sem asas, e sem as mãos, que perdera em um acidente. Um contraste Corinthianíssimo, pois escrevia com caligrafia belíssima.
Foi funcionário do Corinthians desde 1930. Funcionário-símbolo em 1970. Foi assessor de imprensa do clube. Tinha a carteirinha número 7 de sócio, que o sócio original lhe presenteou.
“Sem esse senhor a História do Corinthians seria como folhas ao vento”, diz o próprio Diaféria no capítulo dedicado ao Toninho, na citada obra.
“Seu Amor ao Corinthians não era menor nem menos estrênuo do que foi o amor de Neco. É possível que um dia a lembrança de seu trabalho silencioso e de sua dedicação perseverante como guardião da Memória do clube seja esculpida em bronze e colocada nos jardins da Cidade Corinthians, da qual se tornou Cidadão Ilustre e Fiel merecedor por merecimento e antigüidade”.
Estamos a esperar por essa justiça, pois. SALVE ANTÔNIO DE ALMEIDA!
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O blog é sobre o Corinthians e eu sou chato pra caralho.