quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Per Aspera Ad Astra: A história do mais querido do mundo (Capítulo VIII)

“Per Aspera Ad Astra”
Por Filipe Martins Gonçalves

Nos capítulos anteriores esboçamos um resgate do que foi o Corinthians em sua infância, quando era ainda o Clube de Várzea que nascera predestinado a devolver ao Povo o Futebol.
No segundo capítulo, temos uma espécie de bússola, que sempre será retomada como agora. A História, ao menos em campo – e um pouco fora de campo, também – tem de ser amarrada com o laço forte que são os Capitães e Presidentes que passaram pelo Corinthians nestes primeiros cinco anos.
É natural, então, que principiemos a discorrer sobre o primeiro Presidente Miguel Bataglia, operário que havia se tornado alfaiate com seu próprio esforço e mantinha sua alfaiataria naquele Bom Retiro. Miguel era amigo de Alexandre Magnani, o cocheiro, que era amigo de Antonio Pereira, o pintor de paredes que trabalhava no escritório de Ramos de Azevedo. Além de todo o esforço da rapaziada na construção obstinada do Clube do Povo, nada aconteceria de fato se estas três figuras não fizessem tudo acontecer, de certa maneira.

E foi sob o teto da barbearia do irmão de Miguel, Salvador Bataglia, onde o Clube que teve como primeira sede o céu estrelado iluminado pelo rastro do Cometa nasceu definitivamente.
Mas Miguel entregou a Alexandre o comando do Clube, com menos de dois meses de vida. E é Alexandre quem leva adiante a empreitada como se fosse sua própria vida.
O Corinthians, durante muito tempo, foi um Clube sem placa na porta. “Clubinho”, diziam os detratores do Povo – e ainda dizem coisas semelhantes, imaginando que o Gigante que cresceu por conta própria, no apoio de seu Povo, possa ser “diminuído”. Mas é um Timão em campo, desde os primeiros quadros.
O primeiro Capitão do primeiro quadro do Timão foi Rafael Perrone. Um dos cinco operários que idealizaram e fizeram acontecer o Corinthians, com o trabalho incessante dia após dia, como formigas, para que o Clube do Povo acontecesse como aconteceu.
Perrone era Capitão no tempo em que ser Capitão significava muito; ele escalava, convocava, distribuía as camisas, encaminhava os uniformes para a lavadeira (falávamos dessa importantíssima figura anteriormente) e, sobretudo, tinha que ter trânsito na diretoria e no quadro associativo. Ainda mais no Corinthians, onde a Torcida sempre exigiu ser escalada.

Nos anos de 1910 e 1911, Perrone transformou o Corinthians no Galo Brigador das Várzeas. Fez excursões pelo interior e moldou o Espírito e a Mística Corinthiana dos primeiríssimos tempos.
Naquela época a figura do Capitão era um pouco mais do que a figura do técnico atual, mesmo que um Capitão como Perrone não detivesse participação financeira em passe de jogadores que ele mesmo escalava e insistia em escalar, primeiro por não existir nada disso ainda, e depois que a Torcida não deixaria uma presepada dessa acontecer de jeito nenhum.
O Capitão era querido pela Torcida e representava a Torcida diante de seus Guerreiros em Campo. E, sobretudo, ele mesmo jogava. Perrone era zagueiro direito e ajudou a alimentar a Raça Corinthiana nos primórdios.
Casemiro Gonzales, já então considerado uma liderança inquestionável, substituiu Perrone no comando do primeiro quadro, em 1912. Foi ele quem estruturou o Corinthians que conquistou sua posição de direito no Futebol oficial, quando ganhou o Diploma de time Varzeano que quebrou o tabu.
Foi ele o Capitão do Timão que devolveu o Futebol ao Povo. E quando tudo parecia ir por água abaixo, no campeonato de 1913, é dele a iniciativa de colocar aquela molecada do segundo quadro, o Neco e o Amílcar, para jogar. Decisão mais que acertada, como dizíamos, e o Coringão ficou alguns anos sem saber o que era derrota.

No ano da rasteira, 1915, é Amílcar quem segura a bronca e mantém o pessoal unido ao Corinthians, além de manter invicto o Timão.
É ele também quem suporta acesa a chama desse Amor eterno, para ser Campeão Invicto no ano seguinte, completando o primeiro Tri-Campeonato, não de fato mas de direito, como foi contado nos capítulos anteriores. Amílcar seguiria como Capitão até 1920, quando passou o posto a Guido Giacomelli, que posteriormente também seria Presidente e sobre quem ainda nos fartaremos de falar por estas linhas nos próximos capítulos.
No segundo quadro esteve como Capitão Anselmo Correa, goleiro, outro dos Cinco Primeiros. E o “causo” que nos enveredaremos aqui neste capítulo diz respeito a esse Corinthiano ilustre.
Anselmo Correia foi um dos jovens a ter a idéia da Fundação do Clube do Povo. Quando o Clube aconteceu, agregando o Povo no entorno e para além, todos os pontos de vista passaram a coincidir em um só objetivo: o Bem do Corinthians, ainda que ninguém concordasse com ninguém.
Ah, quem não tem muito amor e bom humor, que vá torcer para outro clube.
Quem não quer investir a própria Vida, e colocar seu corpo e sua alma sob a Bandeira Gloriosa do Povo, que nem chegue cá.
O comportamento, portanto, era único: se nem todos podiam participar das reuniões e assembléias, nenhum faltava à convocação dos Capitães e todos faziam das tripas coração para dar sua contribuição em mão-de-obra ou em dinheiro.

“O Jogador do Corinthians não joga para um simples time. O Jogador Corinthiano joga pela Honra do Corinthians!”, foi uma frase dita e que ficou famosa nesta época. E isso sempre se aplicou a todo Corinthiano.
Mas Anselmo, em uma reunião em 21 de maio de 1913, perdia a paciência.
Reputava como gravíssimo o assunto o qual dava sua queixa. Tratava-se de uma verdadeira ofensa pessoal. Ele havia perdido o lugar no gol do segundo quadro!
Justo ele, que havia tomado sereno organizando o Clube sob a Luz do Cometa e dos lampiões do Bom Retiro, que fora um dos Capitães nos primeiros treinos da vida do Clube do Povo, ali no Campo do Lenheiro. Que ele próprio havia ajudado, e muito, a transformar em cancha para o Futebol! Ele que participara de todos os rateios até então, que estava com todos os recibos religiosamente em dia, justo com ele haviam feito tamanha… sacanagem!

Anselmo pedira a palavra naquela Histórica Reunião da Diretoria, e soltou a bomba.
“Peço demissão¹ do Corinthians!”
O brilho furtivo de uma lágrima de teimosia fugia no bico dos olhos. Na sala, o silêncio só era quebrado pelo bater das asas da mariposa peluda.
A reunião estava no fim, a declaração foi uma surpresa, inesperada. De calça curta, portanto, se viu Alexandre Magnani, o Presidente.
Ora, Anselmo não era sócio comum; era um Benemérito, um Fundador, um dos Cinco Primeiros!
Magnani, o cocheiro de tílburi, amigo de Bataglia que com ele trançara os pauzinhos para que o Clube do Povo transcendesse o simples sonho de verão e que havia sido recentemente re-eleito, tinha que contornar a questão.
Anselmo era esquentado, Alexandre sabia disso. Não engoliria aquela de ser afastado do gol.
Mas sabia também que o afastamento tinha razão de ser e que, do outro lado, os que o afastaram estariam dizendo que o Corinthians não acabaria por causa daquele “goleirinho”…

E durante aquele burburinho de surpresa, disse Magnani:
“Demissão de Sócio Benemérito, de Fundador, não pode ser tratada assim sem mais nem menos, em reunião de diretoria. É assunto grande demais. É assunto para Assembléia Geral decidir”.
Na Assembléia Geral de 11 de julho de 1913 foi que a questão voltava à tona. Os associados Luiz Fabi e Francisco Police cutucavam a ferida.
“Como é que havia ficado a situação do demissionário?”
O Presidente tornava a dizer que não cabia à Diretoria do Clube conceder demissão a um Sócio Benemérito, e que talvez por grande parte dos presentes àquela reunião já terem saído da sala, não tivessem ouvido. Os dois retrucam, dizem que a demissão havia sido concedida. O Presidente discorda, afinal dois meses se passaram, e Anselmo ainda freqüentava a sede do Clube todos os dias…
“Vamos fazer o seguinte”, sugeriu Magnani, com o tato de um diplomata que a experiência da vida lhe ensinara, “nosso caro associado Anselmo está presente e vamos dar a palavra a ele. E ele decide se mantém o pedido de demissão…”

Anselmo Correia respirou fundo antes de começar a falar. Ainda estava magoado com aquela dura injustiça. Quantas bolas não fora buscar no ângulo?, quantas vezes não esfolara o joelho, o cotovelo, a mão, a cara, naquelas piçarras do campo?, quanto suor não oferecera ao Corinthians? Sim, ele estava amargurado.
Mesmo assim disse:
“Retiro meu pedido de demissão! Estava exaltado, não me conformo de ter sido afastado do gol. Fui injustiçado, não mudei de idéia quanto a isso… Mas nem por isso vou abandonar o barco. Peço que desconsiderem meu pedido de demissão. Estava com a cabeça quente…”
O pedido de Anselmo Correia foi não apenas aprovado como recebido com aplausos e abraços. Magnani sorria. Sua tranqüilidade de Presidente dera resultado. E o ex-goleiro insistia, entre um abraço e outro:
“Eu só queria saber porque me tiraram do gol, pô!”

A explicação quem dá é a própra Ata, lavrada por Casimiro do Amaral, o Diretor Esportivo do Corinthians. A seguir, grafada como no original.
“Que tendo entrado, na qualidade de sócio, um goal keeper muito superior ao snr. Anselmo Corrêa, a comissão não tinha hesitado na escolha. E julga que tal decisão estava a contento de todos os jogadores do 2º team e era uma medida também justíssima, porque sócio é o snr. Anselmo e sócio é o snr. Sebastião. Pede, entretanto, aos presentes para julgar o assunto. O snr. Presidente põe em discussão a matéria. A discussão torna-se violenta porque o snr. Anselmo não quer ceder e persiste em sua reclamação. O snr. Presidente impõe silêncio. Acalmados os ânimos, põe em votação a proposta (…)”

Anselmo perdia a parada. Perdia seu lugar no gol do segundo quadro.
Não havia protecionismos. Não havia privilégios. Jogava o melhor. Assim era no Corinthians. O Capitão mandou, que seja cumprida sua ordem.
Sebastião logo passaria ao primeiro quadro e seria Campeão Invicto em 1914, em 1915 seria Campeão dos Campeões “extra-oficialmente”, e novamente Campeão Invicto em 1916.
E Anselmo Correia nunca mais na vida pediu, ou até mesmo aventou a possibilidade de “sair” do Corinthians. Isso era impossível.
Continuou sendo o associado vigilante, atento, e às vezes um crítico excessivamente áspero, de trato difícil.
Mas jamais lhe faltou o profundo amor ao Clube que era a razão de sua vida.

*******
OBS: Parte do conteúdo aqui exposto é inspirado no Capítulo XXXI, “Desde as primeiras atas, um clube forjado nas lutas”, da Obra “Coração Corinthiano” de Lourenço Diaféria.

¹ “Demissão” aqui é o mesmo que “desfiliação”, posto que o caráter “empregatício” do termo não poderia sequer ser cogitado.

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