sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Per Aspera Ad Astra: A história do mais querido do mundo (Parte XXXI)

O Time do Povo
Por Filipe Martins Gonçalves

É importante entendermos o ano de 1977 segundo o viés que leva em conta o processo de recriação cotidiana do Corinthianismo para as gerações que viveram este ano, e parte, ou toda a época de jejum , antes de prosseguirmos na narrativa desta série.

Se alguém tem ou teve um Bisavô Corinthiano, e hoje em dia esse alguém tem 30 anos, então passou a vida ouvindo deste Bisavô as histórias de um passado lendário do Clube do Povo. Nestas Histórias e Lendas, viu o resgate da figura de Neco, acima de tudo. Todas as Histórias de Glórias, conquistas, mas também de como ele foi formador do Corinthianismo, de Corpo e Alma. Ele foi o Símbolo da Lenda do Clube do Povo.
Mas também deve ter ouvido falar muito de Amílcar Barbuy, Armando Del Debbio, Pedro Grané, Achilles Ciasca, Aparício, e também de Antonio Pereira, Tantã, e tantos outros ilustres Corinthianos de dentro e de fora das quatro linhas, onde a Deusa Bola simula as batalhas. E falando em batalhas, a família Bataglia também toma parte na narrativa deste idealizado Bisavô.
E, claro, a Ponte Grande terá sido a grande experiência de vida dele, quem sabe ele conte também Histórias do Campo do Lenheiro, enfim.
Ele contará histórias sobre o Ano Sagrado de 1922, os tri-campeonatos da Década Dourada, e com certeza 1930 foi um ano mais que essencial na vida dele.

O Avô irá contar sobre a Fazendinha, o tri-campeonato de 37-38-39, os primeiros títulos profissionais no Futebol, e sempre recordará da Peteca, do Remo, da Natação, dos primeiros titulos no Basquete. Falará sobre Teleco, Servílio, Carlito, Brandão, Dino, Pavão, Jango, Chico Preto, Pai Jaú, e terá o ano de 1941 como ano essencial na vida. Quem sabe, este Avô tenha pedido a Avó em casamento em um piquenique no Parque São Jorge, o cenário mais que romântico da curva do rio Tietê quando era limpo, na Enseada da Cidade Corinthians, e ela tivesse aceitado ao som de uma serenata na bucólica e ensolarada tarde que caía...

Mas o Pai terá vivido o ano de 1954 quando ainda era menino, e terá atravessado a Era Trindade com o Corinthians tendo consolidado a sua vocação poliesportiva, sendo o Clube mais vitorioso do país, sem ao menos ter completado 50 anos de História.
Esse Pai jejuou pela infância, juventude. e foi ser campeão já beirando os 30 anos de idade.

Este é o caso de muitas Famílias Corinthianas, e por isso o ano de 1977 é formador até para este que vos escreve, sem ao menos ter tido a sorte de nascer antes para poder vivê-lo.

O ano de 1977 foi a síntese de um jejum. Foi como no sexo tântrico, uma intensa relação para explodir em um orgasmo contínuo, em imensas explosões contínuas. E este orgasmo reverbera toda a energia por muito tempo. O Corinthiano não tem pressa, e não obstante a Torcida Fiel cresceu durante esse jejum. Enquanto a alegria, para os comuns, acaba rápido, a do Corinthiano reverbera, pois o jejum ensinou isso. Assim foi 1977.

Por isso não se limitou a uma conquista, pois não foi uma simples conquista. Não à toa foi o maior campeonato conquistado na história do Futebol, modéstia à parte.
E quem nos comprova isso é o próprio Povão que viveu tudo isso.
É a síntese tântrica de vinte e dois anos, oito meses e sete dias de intenso Amor ao Clube do Povo.
E é ao mesmo tempo um instante, um lance, em que a bola bate, rebate, vai e volta, até encontrar o Pé de um Anjo, predestinado. Um gol que todo moleque repetiu durante a infância, jogando bola na rua e chutando no portão da casa da senhora vizinha, que vinha reclamar com um ar de satisfação, afinal era mais um gol Corinthiano...

Foi o ano da desforra do Corinthiano que jejuou, e muitos deles até então não haviam visto uma conquista no Futebol. O Pai, por exemplo, pode ter tido como ídolo um jogador de basquete, tetra-campeão Sul-americano. Mas a maioria da juventude na época amava o Corinthians, não por suas conquistas, mas pelo que ele representa e é.
Aquele que não era campeão, sabe-se lá por qual fenômeno, era também o mais amado de todos.
O time da moda na época contava com Pelé, e nunca teve o apelo popular que sempre coube ao Corinthians. Por isso era natural, como sempre foi natural, que os que nascessem nesta época de jejum, se fizessem Corinthianos; é o Time do Povo. Não da colônia, ou do salão de chá. É o Coringão que todo mundo gosta, venera e ama.

Trindade saiu em 1959, e Matheus assumiu. Depois Helu, Martinez, e Matheus novamente. Isto durou até o ano de 1981. São 22 anos entre Matheus, Helu e Matheus novamente. Duas figuras paternalistas, e antagônicas ao mesmo tempo.
Vicente, um ditador à moda espanhola, cujo coração fervia em azeite e cujo sangue era sangria, havia aprendido o Corinthianismo com Trindade, e recriado à esta moda. Helu captou apenas a parte política de Trindade, de se aliar ao sistema vigente, de forma que fez parte do regime de exceção de 1964, e abraçava o 'amigo' Laudo Natel. Foi deputado estadual e andava de mãos dadas com o gerente do banco, que fazia parte do salão de chá.
Antes disso, porém, em trabalho conjunto destes presidentes, o Coringão inaugurara o Ginásio, fazendo do Basquete Corinthiano o mais vitorioso do Brasil, em que não é alcançado até hoje por nenhum outro. Mas foi só com Matheus que 1977 pôde acontecer.

No começo da década de 1970 já se ouvia dizer, e se podia ler em matérias jornalísticas, o Povo dizendo que quando o Coringão fosse campeão, o mundo pegaria fogo. Fato é que durante as décadas de 60 e 70, o Corinthians resgatou todo o ideal que está em sua Raíz e em sua Mística, do operariado que luta, que carrega a fome de vencer e o anseio de emancipação, e que por isso proporciona a experiência única da Liberdade Coletiva.
O jejum, compreendido como uma saga, um calvário, uma travessia do deserto, não obstante essa Liberdade Coletiva, fez acontecer os Anjos, e os caídos em desgraça.
Se multiplicar durante a travessia, e chegar mais forte ao seu destino, foi coisa que apenas o Povo Corinthiano, emancipado, poderia fazer.
E veio o fim do jejum. Tudo parou para comemorar o Clube do Povo, a sua existência, a sua Alma, a sua mais que grandeza. E um campeonato paulista passou a ter mais importância e mais valor que todos os outros, por fazer parte da História da Emancipação Popular. Seu valor passou a ser universal.

Quer uma prova?
Aos livros, pois. À Academia.
Em sua tese, publicada com o título "A Democracia Corinthiana - práticas de liberdade no futebol brasileiro", José Paulo Florenzano resgata a história de Germano Araújo da Silva, que em 1977 já tinha 102 anos de idade.
"'Eu era rapazinho quando houve a abolição da escravatura. Mas a gente vivia lá na roça, nem sabia dessas coisas. Meu pai continuou trabalhando do mesmo jeito na fazenda'. Germano herdara do pai a função, exercendo-a até ter as forças do corpo exauridas. Então, com quase noventa anos, sem mais serventia para os donos da fazenda, resolveu migrar para a cidade de São Paulo, no início dos anos 70, instalando-se em uma favela da Vila Joaniza, região de Santo Amaro. Com mais de cem anos de idade, continuava a fumar seu cigarro, a beber sua cerveja e a farrear no forró. Mas, agora, ele se descobria e se identificava como Corinthiano e, no seu barraco de dois cômodos sentia-se parte de uma imensa comunidade imaginada, cujos laços passavam pela cor da pele, pelo suor do rosto e pela vontade inquebrantável de ser feliz".
Por isso, na sua TV preta e branca, Germano não perdia a transmissão de um jogo do Corinthians.
Segue Florenzano; "A Força Cultural do Corinthians refletia no crescimento exponencial de uma torcida que o conduzia (...) estava no poder desta representação coletiva ou, melhor, no fato de se constituir no símbolo dos grupos subalternos e lhes servir de veículo para expressar os seus anseios e emoções".

É por isto tudo que o Clube do Povo eleva 1977 ao ano mais importante da História do Futebol, fato superado apenas em 2010, ano em que completará um século de História.
Matheus, como presidente, ganharia ainda o campeonato de 79, que aconteceu em fevereiro de 80. Portanto, de 13 de outubro, ou da madrugada de 14 de outubro de 1977, a 10 de fevereiro de 1980, como nos diz Florenzano na referida obra, o Corinthians "ingressa em uma era transitória no decorrer da qual (...) de forma sutil, imperceptível e mais profunda, os elementos que compunham e permitiam tal reconhecimento (o Corinthiano se reconhece como Torcedor do Clube do Povão, segundo o autos, à página 151, capítulo "Nau dos Loucos") começavam a se reordenar em uma nova configuração".

O Corinthianismo do jejum, perturbadoramente fanático e sofredor, dava lugar ao bom humor Corinthiano exacerbado, nas faixas "Estou de saco cheio de ser campeão", se reinventando, se recompondo dentro da Mística do operário, do Povo sofredor. E, na crise vivida pelo país, no movimento de anistia e reabertura política, após um "jejum" de liberdade no Brasil, surge através do Corinthians Paulista um movimento.
Matheus, como já dito, sai da Presidência. E Waldemar Pires assume, colocando um sociólogo para interagir com o Doutor Sócrates.
Enquanto o Bisneto daquele Bisavô crescia, passava de bebê a criança, surge a Democracia Corinthiana.

A História Continua...

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