Per Aspera Ad Astra: A história do mais querido do mundo (Parte XXXII)
O Time do Povo
Por Filipe Martins Gonçalves
A faixa "Povão Torcida Unida" estava aberta na Arquibancada quando o Doutor Sócrates, com a camisa 9, abriu o placar e os caminhos para a conquista do campeonato de 79, em fevereiro de 1980. Mas foi só depois do gol de Palhinha, o segundo do jogo, que o Carnaval Corinthiano começou. E durou até o Carnaval...
O Corinthiano Maloqueiro e Sofredor, Graças a Deus, emendava a faixa "de saco cheio de ser campeão", só para fazer troça dos detratores do Clube do Povo. O Coringão tinha sido campeão há duas décadas, quando não existia tevê colorida (77 aconteceu de noite, e por isso parece naturalmente preto e branco...). E jogos de Futebol só eram transmitidos pelo rádio. E agora a Fiel Torcida comemorava novamente, no Futebol, já que havia ido comemorar Tradições e Glórias Mil em outras modalidades, como verdadeiro clube poliesportivo.
O Clube que não iria durar até o próximo inverno, e que revolucionou o Futebol menos de três anos após sua fundação, que levou o Povo ao Futebol "oficial", colocou justiça na disputa pela Deusa Bola, enfim, este Clube que nada mais é que sua própria Torcida - que já existia desde muito antes do time entrar em campo - voltava a comemorar o Futebol. O Coringão, Clube-Religião, Meca dos Guerreiros Sofredores, era campeão novamente, fato raríssimo. A Fiel não continha a alegria, e a estranheza com aquele fato. Ser campeão novamente...
E, ao mesmo tempo, este "ser campeão novamente" forjou as bases do vulcão que agora começava a tomar nova configuração. O folclórico Presidente, o mestre do Corinthianismo que conduzira o ônibus no engarrafamento da avenida, abrindo caminho entre os carros, para chegar ao estádio, Matheus era agora enterrado pela Torcida como "ditador incompetente", antes das eleições de abril de 81.
Ricardo Gozzi, na obra que produziu em conjunto com o Doutor Sócrates, “Democracia Corintiana, A Utopia em Jogo”, diz assim:
“A Democracia Corintiana esteve intimamente ligada ao processo de abertura política do Brasil após anos de um regime militar cruel com seus opositores e dissidentes. Os jogadores filiaram-se a partidos de acordo com suas convicções políticas e tiveram participação ativa em movimentos como Diretas Já!, cuja proposta de eleições diretas foi rejeitada pelo Congresso Nacional em 1984.
Nos vestiários, os atletas discutiam mais política que futebol. Sócrates, o mais proeminente líder do movimento, conta que desde jovem conserva o hábito de separar a seção de esportes dos jornais, sem a ler, pois as informações que lhe interessam encontram-se em outros cadernos, como os de política, economia ou internacional.
O revolucionário sistema implantado no Corinthians a partir do fim de 1981 colecionou inimigos internos e externos, que atacavam justamente os principais êxitos do projeto. A maior participação dos jogadores nas decisões do Departamento de Futebol do clube, o fim da concentração para atletas casados e a participação proporcional destes no montante arrecadado nas bilheterias e sua divisão entre o elenco foram os principais alvos dos críticos do movimento.
Porém seria impossível compreender a Democracia Corintiana sem saber o que se passou no clube nos anos que a antecederam, especialmente nos quase dez anos consecutivos durante os quais Vicente Matheus ocupou ininterruptamente a presidência do Corinthians”.
E quando Waldemar Pires vence essas eleições de abril de 81, Matheus de vice, o decano que havia tirado a Fiel do jejum estaciona sua Mercedes na vaga de presidente.
"Pode falar comigo, aqui quem manda sou eu", dizia Vicente, que agora era vice, mas pretendia continuar presidente.
O presidente Waldemar Pires sinalizava a renúncia, o que efetivaria o vice. Seria a opção mais favorável ao próprio Matheus, portanto. E teria sido o maior papelão. Mas Waldemar não renunciou, de jeito nenhum. Vicente Matheus então se recolheu, diante da pressão da Torcida e da imprensa. O velho sábio foi observar tudo ali de perto, para ver o que aquela molecada iria aprontar.
E o Coringão entrava em mais uma daquelas crises. Não apenas política. O time ia mal, a Torcida protestava, a Taça de Prata era disputada pois o time fizera uma péssima campanha no Paulista.
E algo novo surge no Corinthians, quando Adilson Monteiro Alves, jovem empresário formado em Sociologia, se apresentava como Diretor de Futebol do Corinthians, na concentração "que deveria durar no máximo dez minutos, acabou durando 6 horas", segundo Florenzano, em sua tese que virou livro, “A Democracia Corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro”.
Que segue; "O bom encontro entre Adílson Monteiro e o grupo de atletas mudaria a história do Corinthians e, por extensão, a do futebol brasileiro. Ao invés de reeditar uma estrada tantas vezes percorrida rumo à pirâmide hierárquica, aquele jovem e ousado diretor, vestindo jeans e usando barba, propunha-se suprimir a distância entre dirigentes e dirigidos, assegurar o livre debate de idéias e instalar o círculo democrático através do qual, em conjunto, todos os envolvidos começavam a esboçar os contornos da nova geometria do poder. Enquanto jornalistas e torcedores consideravam-no uma incógnita, os jogadores em geral, e Sócrates em particular, agora não tinham mais nenhuma dúvida: "Ele é um dos nossos""
E a saída do velho Ditador do comando acaba deixando o terreno livre para uma experiência de autogestão Corinthiana.
Falando a mesma língua que o seu diretor, a Orquestra Corinthiana passou a tomar liberdades e improvisar durante a sinfonia.
Na mesma língua deliberavam.
E desse penoso fim de ano disputando a Taça de Prata, voltamos para a Taça de Ouro no começo de 1982. A “magia” do regulamento brasileiro, de classificar o melhor da Taça de Prata para a Taça de Ouro em um mesmo campeonato, acabou impulsionou o Movimento da Democracia do Parque São Jorge.
Jogando o fino da bola, fomos semifinalistas da Taça de Ouro. Tudo isso antes de ensacarmos os rivais verdes em 5 a 1, em 1º de agosto de 1982, com o irreverente Democrata Corinthiano, Walter Casagrande, saído das categorias de base, fazendo três gols.
A autogestão engrena em campo, nos pés desse goleador, de Biro-Biro, de Zenon, de Sócrates...
Na citada obra, criada com Ricardo Gozzi, Doutor Sócrates começa o capítulo “Quando as mudanças começam” assim:
“O poder do futebol está em seu grupo de atletas. Podem tentar interferir, mexer, limitar, castrar, mas o poder mesmo está ali. A partir de algum momento, de alguma forma, isso já se instalou como realidade no Corinthians. É claro que existiam algumas reações internas e muitas externas. Mas já não dava pra mexer mais. Estava enraizado. Até porque a força que as pessoas adquirem numa situação adversa é enorme. Torna-se complicado alguém tentar destruir. Houve diversas tentativas, mas internamente eram bem mais discretas do que externamente.
O jogador de futebol não tem consciência de seu poder. Por que o nosso sistema social existe, ainda hoje, da forma que é? Porque pelo menos metade da população não tem consciência nenhuma daquilo que pode realizar. Se você não tem uma informação, você não sabe o que existe além de você.
(...) No cotidiano, nós não temos nenhuma participação nas decisões do país. A nossa pirâmide de decisão só tem o topo. Mais nada. Imagine o cara que não possui conhecimento. Ele não tem como brigar no mundo de hoje. Se formos analisar cruamente, o atleta de futebol dos dias atuais é alguém que tem um poder econômico e político nas mãos que todo mundo sonha em ter. Mas ele não sabe usar, pois não tem informação.
Por que o atleta vive em guetos? O cara ganha R$ 100.000 por mês, tem bastante poder político, tem popularidade. Ele deveria ser um agente da sociedade. Ele deveria criar. Porém, ele se isola por falta de informação. E é isso o que o sistema quer conservar. Quanto mais ignorantes forem essas pessoas, mais fácil de elas serem controladas. A ignorância é um instrumento da opressão”.
E pensando nisto tudo a Democracia Corinthiana foi acontecendo, aos poucos. Sem pressa. No Bar da Torre, tomando uma cerveja e trocando idéia. O Brasil estava mudando, depois de um longo e tenebroso inverno ditatorial. E assim, acontecendo, espontaneamente, surgiu o maior movimento ideológico do Futebol. A Democracia Corinthiana.
“A partir de hoje, o que for coletivo, nós vamos votar”.
E este processo todo desencadeou uma série de discussões. E com elas, as reivindicações. E com tudo isso, um Futebol jogado por música. No fundo, foi sempre isso que sustentou a Democracia. O Futebol. O toque de calcanhar do doutor, a raça de Biro, os gols do Casão, a inteligência filosófica de Zenon. Sem isto, nada seria.
E foi com a Raça Corinthianíssima de Antônio José da Silva Filho, o Gigantesco Biro-Biro, que a Democracia conquistou seu primeiro campeonato. Com dois gols de quem se multiplica em decisões, Biro garantiu a Festa do Povão Democrático da República Corinthians. Casão ainda fez o terceiro, e assim a freguesia se manteve descontrolada. A Democracia chegava mostrando as verdades Corinthianas...
Era dezembro de 1982, o Povo em Festa. E a imprensa conservadora passou a criar rótulos para a autogestão que funcionava em campo. Casão rodou, integrantes da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar o intimidaram. “Embora distante apenas três quilometros da rua onde se dera o suposto flagrante, o percurso até a delegacia demandou mais de 40 minutos”, assinala Florenzano.
“Tempo suficiente para que os policiais pudessem avisar os meios de comunicação e convocar reforços para o espetáculo que o acontecimento exigia”. Era tudo o que as velhas raposas queriam. Tudo o que os que temiam o sucesso da Democracia queriam.
Diz o Doutor: “Nós tínhamos informações que estavam organizando alguma coisa, com algum de nós, e o Casão era o mais provável. Isso era para acontecer antes das finais. Inclusive o Casão ficou comigo ou com o Wladimir quatorze dias. Não o deixávamos sozinho de jeito nenhum”.
A imprensa, no dia seguinte ao ocorrido, exagerava, dizia que Ataliba também estava preso, junto com o moleque cabeludo que fazia gols.
Era este o estereótipo da Democracia, pelos conservadores: o bêbado, o drogado e o negro.
Sim, pois Wladimir, além de tudo o que jogava em campo, ainda tinha firmes suas posições políticas, inclusive dentro do Movimento Negro.
Mas isto é feito com o Corinthians desde a época do Alexandre Magnani, que foi cocheiro. O Corinthians era, para a imprensa conservadora, o “clube dos carroceiros” por conta da profissão de seu Presidente, veja só a ‘originalidade’ dos detratores...
Enquanto isso, o Coringão enfiava 10 no Tiradentes. É a maior goleada desde 1971 em campeonatos brasileiros. Mas não é a maior goleada da História do Clube do Povo; a maior é o 11 a 0 em plena Vila Belmiro, em julho de 1920.
E em seis de março de 1983, a eleição para Presidente do Corinthians colocava Waldemar e Matheus em disputa. E o associado Corinthiano saiu de sua casa, fosse ela em outro estado, apenas para garantir a vitória de Waldemar, pela Democracia. Uma questão de honra, mesmo.
“A Democracia Corinthiana, eis o traço que a distinguia, abria-se em múltiplas direções: ela acampava com os desempregados em praça pública, ia ao sindicato do ABC trocar informações com os operários, entrava na universidade para debater com os estudantes; mas, ao mesmo tempo, reunia-se no Bar da Torre dentro do Parque São Jorge para tomar cerveja e fumar um cigarro; subia ao palco no ginásio do Ibirapuera para celebrar com Rita Lee os Jardins da Babilônia; aventurava-se noite adentro pelas artérias da metrópole em busca da alegria dionisíaca que a mantinha viva e desperta e a constituía na contracultura do futebol brasileiro”. (Florenzano)
Enquanto tudo isso acontecia, Casão parecia ter se abalado com o tratamento da mídia e não fazia gols como antes, e Mário Travaglini, um grande democrata da bola, pedia demissão.
Zé Maria foi eleito técnico pelo grupo. E havia acabado de ser eleito Conselheiro do Clube.
Esse fato, aliás, provocou angústia nos detratores da Democracia. Alegavam agora que a Democracia era um “regime” que transferia poder administrativo do clube para os jogadores...
Os conservadores não conseguem pensar fora de seus próprios eixos. A possibilidade de deliberação era um trauma para quem se apegara à ditadura. A Democracia sempre foi uma ameaça para os detratores... Assim como o Corinthians havia sido uma ameaça para a oligarquia da bola, em 1913 (leia os primeiros capítulos desta série).
“O que queremos com nosso projeto no Corinthians é propiciar aos operários do futebol, que somos nós os jogadores, a participação na gerência do trabalho”, dizia o Doutor em abril de 1983.
Nessa época a Democracia disputava a Taça de Ouros e ganhava, mas não levava. E depois de dez jogos, Zé Maria voltava a ser jogador. Mas continuava Conselheiro.
E então, desde maio até dezembro, um calendário interminável, o Paulista foi disputado. Leão surgia como goleiro do Corinthians. Jorge Vieira como técnico. E depois de 47 jogos, com direito a um verdadeiro baile na marcação verde, nas semifinais, quando o Doutor “sacaneou um pouquinho” o volante Márcio que não desgrudava. O Doutor dava piques com a bola parada apenas para a torcida gritar olé, vendo o palmeirense correr atrás de bobeira. Na final, em três jogos, o Corinthians venceu o primeiro, e empatou os outros dois. Sempre com gols decisivos do Doutor da bola.
A História Continua...
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O blog é sobre o Corinthians e eu sou chato pra caralho.