sábado, 24 de julho de 2010

Per Aspera Ad Astra: A história do mais querido do mundo (Parte XXV)

O Time do Povo
Por Filipe Martins Gonçalves

No capítulo anterior introduzimos a Década Dourada do Corinthians Paulista. Mas antes de avançarmos pelo tempo cronológico dos fatos, retomemos o Presidente Alfredo Ignácio Trindade, a exemplo de como fazíamos no início desta série com o Ano Crucial de 1915. É importante que se entenda quem foi esta figura.

O Corinthians sempre teve, em seus Presidentes da Velhíssima Guarda, um aspecto de presidentes de assembléias.
E era o que de fato faziam os Presidentes do Clube do Povo; gerenciavam discussões para o que deveria ser feito.
Faziam, agiam, mas naquela época tudo era muitíssimo mais difícil, e administrar aquele turbilhão era tarefa para quem tinha muito bom diálogo.
Torcida, time e diretoria se mesclavam de uma forma que nenhum outro clube no mundo nunca ousou fazer.
O Corinthians é a Torcida que tem um Timão.
Qual outro Clube poderia ter uma figura como Guido Giacomelli?

Aos poucos a estrutura burocrática do Corinthians foi se consolidando, para ser a base de um Clube grande.
E o Clube precisando, como todo e qualquer clube, de um mecenas.
Mecenas este que foi alçado àquela função mais por comprometimento e merecimento que por vontade.
Schürig, que inaugura de fato um modo de ser paternalista na Presidência, amava o Corinthians e a ele dedicou a própria vida e fortuna. Sem cobrar qualquer coisa em troca, senão o pertencimento envolto em muita Honra a essa coletividade Corinthiana.
Inaugurou diversas modalidades esportivas no Clube, e no fim de seu mandato acabou se deparando com o profissionalismo no Futebol. Não mais era possível ser o mecenas.

Amparado pela estrutura que dispunha, o Corinthians penou mas se acertou na administração do profissionalismo.

Eis que este modo de cumprir o papel de Presidente do Corinthians passa ao cargo de Manuel Correcher. De paternalista passa a ser ultra-paternalista; "Con razòn, sin razòn, Corinthians tiene siempre la razòn". Com razão ou sem razão, o Corinthians tem sempre a razão.

Correcher defendia o Corinthians com todas as forças. Foi, provavelmente o Presidente mais amado pela Torcida, pelo seu poder de conciliar e ser simples, ao mesmo tempo em que era Corinthianamente extremista e apaixonado.

E, de tão amado que era pela Torcida, fez Trindade perceber quão tênue é essa linha entre o amor do torcedor e do eleitor, quando aplicada na política.

Trindade misturou Presidência do Corinthians com votos para se eleger. Foi o primeiro a fazer isso. Depois foi imitado por gente de outras associações.

Na verdade, Alcântara Machado, Presidente Honorário, foi também notável político, mas não misturou eleitor com torcedor daquele Corinthians de sua época, as décadas de 10 e 20, Clube ainda jovem, mas que já havia vencido todas as batalhas e que só precisava da Ponte Grande para crescer.
E nenhum dos "políticos Corinthianos" fez o que políticos de certa associação faziam e fazem. Mas isto é outro papo.

"Porque as viúvas desamparadas, os orfãos, os velhos nos asilos, os doentes nos hospitais, os presos nos cárceres, as crianças em farrapos e sem sapatos das favelas, os sofredores deste imenso Brasil estão à espera de um momento de alegria, e essa alegria está nos pés de vocês!"

Eram discursos assim que ele fazia no vestiário, antes de uma partida. Ou então para a própria Torcida, na Arquibancada. Trindade era um orador nato, e discursava a todo instante.
Mas quando a bola rolava, era um Corinthiano como qualquer outro. Quando os ânimos acirravam, batia boca com o adversário, ou mesmo com um outro Corinthiano.
Fato é que Trindade, mais que qualquer outro antes e depois dele, foi o próprio Corinthians, enquanto seu Presidente-Torcedor.

Quando o Corinthians é Campeão de 51, em janeiro de 52, Trindade ergue a taça e dá a volta olímpica com os jogadores. Como sempre se fez no Corinthians, desde sempre, mas a forma como Trindade agia era outra. Era como se fosse o Corinthians em pessoa.
Ele repetiria muito esse gesto.

Retomemos, então, o fio da meada.
No começo de 52 chega ao Coringão o lendário centro-médio Goiano. É ele quem faz a linha média com Idário e Belangero, na Taça Rio daquele ano. O zagueiro Corinthiano Murilo havia sido substituído por Homero naquela virada (anotem, cá está mais uma virada) contra o Peñarol.

Mas não foi por nada, não, foi só que um uruguaio lhe rompera os ligamentos do menisco...
Baltazar também saiu, pois fraturaram seu maxilar.
Belangero quebrou o pé naquele dia, por conta da violência do adversário. Que, mesmo com isso tudo, tomou a virada e fugiu do segundo jogo¹.

Lorena substituiu Belangero, um mês depois. Era um Derby. E valia a Taça Cidade de São Paulo.
O Palmeiras saiu com um gol logo aos 3 minutos de jogo. Carbone empatou aos 9 minutos. E depois da virada (mais uma!) aos 21 minutos, uma goleada, com direito até a Pequeno Polegar fazendo estripulias.
Ele dizia que não, e quando confessava até disfarçava, dizendo que se desequilibrou e caiu.
Reza a lenda que ele sentou na bola, diante de Luiz Villa, que tinha o dobro de seu tamanho, após passar a pelota por duas vezes debaixo das pernas do zagueiro palmeirense.

Naquele ano, além desta Taça, o Corinthians conquistou mais um Bi-Campeonato Paulista.
Chegávamos àquela última rodada do Campeonato de 1952, disputada em 1/2/53, com o título garantido
Era o jogo contra uma certa associação, e o que restava aos jornais era dizer que a faixa do campeão "poderia ser carimbada".
Logo aos 3 minutos, o placar era inaugurado, e era adverso. Ampliado aos 41 minutos do primeiro tempo.
Só se ouve os Corinthianos chiando. Trindade desce ao vestiário no intervalo.

Baforando seu charuto, mastigando seu charuto, jogou o chapéu no chão, com o lenço na outra mão limpando o suor do rosto, rosnava.
Fitou a todos. Um por um. Ninguém se movia.
Nem mesmo o Pequeno Polegar ousava dizer qualquer coisa naquela situação.

"Vocês não merecem a faixa de campeão!", disse o Presidente, com a voz amarga. Aquilo em certo sentido era pior que uma surra de cinta.

Todos os jogadores concentrados, uma pilha de nervos, o Timão volta ao jogo.
Logo aos 3 minutos, Souzinha, o ponta que substituia Mário, diminui para o Time do Povo.
Carbone, o goleador, empata aos 15 minutos.
O discurso de Trindade funcionava, em quinze minutos tudo era Festa novamente. Também porque o Timão joga muita bola.
Mas Carbone, naquele dia, não tirava da cabeça os discursos do Presidente.

"Vocês tem um dom divino! Não desperdicem isso!"

Carbone sabia muito bem o que era uma Torcida comemorando um gol, ele fazia muitos. Foi dele o gol desta virada.
O Clube do Povo, o Timão das Viradas...

"Quando terminou a partida, o Trindade estava na boca do túnel, com a cor normal dele, rindo, abrindo os braços que nem um pai recebendo os filhos depois de os filhos terem ganho medalha na escola.
Tinha esquecido da bronca, de tudo.
O bom coração do Trindade esquecia as broncas na hora.
Trindade abraçou todo mundo, tinha até trocado o charuto".
Essas são palavras do próprio Goleador Corinthiano, Rodolfo Carbone².

A História Continua...

*******

¹ Na Final, contra o Fluminense, o Corinthians jogou com seis desfalques, todos contundidos. Perdemos jogadores, o título, mas tudo teria sido diferente naquela Taça Rio de 52.

² Página 282 da obra "Coração Corinthiano", de Lourenço Diaféria; Capítulo LIV, "Carbone, o cavador".

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