Per Aspera Ad Astra: A história do mais querido do mundo (Capítulo IX)
O Time do Povo
Por Filipe Martins Gonçalves
Já foi dito que 1915 foi o ano da rasteira. Exaustivamente repetimos aqui, pois é mais que importante que se entenda; o ano de 1915 é crucial na vida do Corinthians. Um golpe elitista dos anticorintianos havia posto à margem o Clube do Povo.
Também já foi dito que o acontecimento do referido ano sacramenta a própria Mística Corinthiana, pois o Corinthianismo é algo palpável, um fenômeno que se pode observar e estudar. Os detratores torcem o nariz, mas o que ocorre em 1915 deixa abismado todos aqueles que queriam ver extinto o esforço popular de se construir um Clube a partir das próprias forças.
Não fossem os Corinthianos desse sofrido e glorioso ano de 1915, o Corinthians Paulista já estaria reduzido a pó, como queria a anticorintianada. Pois o Corinthians trazia consigo a popularidade que nenhum clube jamais conseguiu por si só.
E, como gigantesco que sempre foi, nesse ano não apenas sobreviveu como se fortaleceu e aprendeu a dura lição da vida que os humildes têm de compreender.
Quando Magnani, que levou o Clube das Várzeas ao Futebol “oficial”, entrega ao seu sucessor o cargo de Presidente, em 30 de setembro de 1914, muita coisa já havia acontecido ao Clube do Povo. Notáveis glórias já havia vivido o Povo Corinthiano. Assim, antes mesmo de se compreender as razões que tornaram o ano de 1915 o mais marcante dos primórdios da História Corinthiana, e por isso mesmo foi o ano que moldou a Mística, é preciso compreender o que de muito importante aconteceu em 1914, além da primeira conquista invicta do Campeonato Paulista.
Em 15 de agosto de 1914 aconteceu a estréia do Corinthians Paulista em jogos internacionais. E é bom frisar que esta cidade era tão povoada por imigrantes italianos que o tão conhecido, atualmente, sotaque da Móoca era o dialeto comum a qualquer bairro, ladeira e esquina desta que se tornaria a cidade de todos os Povos, assim como o Clube que melhor a representa. E já a representava.
Para tanto, devemos dar a palavra ao próprio treinador e diretor do Torino, clube que aqui veio mostrar a pujança do futebol italiano. Disse o signore Vittorio Pozzo, ao giornale daquela città, o Sport del Popolo;
“O Corinthians é uma esquadra formidável em todas as suas linhas. Os italianos ou filhos de italianos e todos eles são, individualmente, de categoria superior à média dos jogadores que atuam na Italia. Os backs são fortes e seguros, os halves são trabalhadores incansáveis, os atacantes são velozes e apresentam ótimo entendimento.
Nos dois jogos que fizemos com o Corinthians somente conseguimos sair vencedores depois de uma luta extenuante. O Corinthians é um team de classe, que poderia enfrentar qualquer esquadrão da Europa”.
Isso, claro, tomando como preceito que a Europa tivesse os melhores esquadrões do mundo, e não citando as grandes esquadras sulamericanas.
Mas, sobretudo, frisando que nas duas oportunidades, conforme são relatadas as partidas, o Corinthians sofreu com os árbitros.
O Torino era, então, o clube que viria levantar o moral do povo italiano em terras estrangeiras. E antes de enfrentar o Campeão Paulista invicto, enfrentou o Internacional, que goleou por 6 a 0. Depois, enfrentou a seleção da Liga Paulista, impondo um 5 a 1. A terceira foi a primeira disputa contra o Corinthians, cujo árbitro foi o italiano Minoli, grande amigo de Vicente Ragogneti. O resultado foi a derrota Corinthiana, com direito a gol impedido ignorado. Mas como se vê, o próprio diretor do Torino sabia o que estava dizendo. O duríssimo 0 a 1 para o Torino se transformou em 0 a 3, com um pênalti também mal assinalado.
Quatro dias depois, o amigo do árbitro, Ragogneti, editor do tablóide “Fanfulla”, que tinha como característica atacar gratuitamente o Corinthians por conta de sua natural miscigenação e ojeriza ao que mais prezava seu editor, que era a exclusividade pela colônia italiana, convocava os italianos e ítalo-brasileiros à fundação da Società Palestra Italia, que viria a acontecer no ‘chiquérrimo’ salão Alhambra, com estatuto que pretendia, além do Futebol, dar ao clube um caráter de sociedade “filodramática e dançante”. É de se notar que no primeiro time que entrou em campo com aquela camisa, havia cinco Corinthianos, deste Timão que enfrentara o Torino. Mas isto é outro papo.
Depois disto, a seleção da Liga Paulista pede revanche. E toma nova goleada, desta vez mais acachapante; 7 a 1.
E o que faz o Corinthians? Ora, pede sua desforra também. O Torino não pode se negar. E o jogo terminaria empatado…
Sebastião faz a defesa parcial de uma bicuda de Debernardi. A bola sobe ao travessão (ainda quadrado – as traves redondas não existiam…) e volta ao chão. Sebastião agarra. Chuta pra frente. O Povo urra de alegria. Mas o árbitro, Charles Miller, via o que ninguém viu. Nem mesmo os italianos do Torino. Trila o apito, aponta ao centro do campo, valida o gol inusitado, sequer imaginado ou visto. Isso tudo nos minutos finais da partida…
Mesmo assim os Corinthianos saem louvados pela multidão que os carrega nos ombros, naquele Velódromo que hoje é a Praça Roosevelt, no começo da Rua da Consolação.
Os heróis Corinthianos: Sebastião, Fúlvio e Casemiro Gonzales; Police, Bianco e César; Américo, Peres, Amílcar, Aparício e Neco.
Em 30 de setembro de 1914, Alexandre Magnani entrega o cargo de Presidente a Ricardo de Oliveira, em uma sessão festiva. Novos associados, de nacionalidades distintas, de origens múltiplas, naquele dia integravam o Clube do Povo.
Magnani discursa. Sente muito “deixar a presidência de um clube que viu nascer, que viu galgar os degraus da glória e que hoje representa uma das mais poderosas agremiações esportivas paulistas. A diretoria que deixa seu cargo, caros consócios, faz os mais ardentes votos de que reine sempre entre vós a mais pura cordialidade e coleguismo. Que os novos e nobres diretores, cheios de entusiasmo pelas lutas esportivas, nunca venham a desanimar. Que a disciplina social, a obediência aos estatutos e aos regulamentos, a deferência para com aqueles que vós mesmos escolhestes para dirigir a sorte de nosso clube sejam sempre escrupulosamente observadas, em prol do prestígio do nosso clube. O segredo da força de uma coletividade é constituído pelo respeito às leis que a governam. A directoria que deixa seus cargos tem absoluta certeza de que seus sucessores, por longa série de anos, acompanharão e guiarão o Corinthians em um caminho cada vez mais Glorioso”.
Ricardo Oliveira retribui as palavras de Magnani, em seu breve discurso de posse, agradecendo a “Magnani, verdadeiro apóstolo Corinthiano, a quem o clube deve a sua organização, a sua força e a sua glória”.
Não são palavras à toa. Magnani foi isso tudo, justamente. E se breve foi seu discurso, breve foi a contenda que Oliveira abraçou. De início já sentiu na própria pele que dirigir o Corinthians Paulista era “comandar um barco de emoções num oceano de paixão”, como definiu Lourenço Diaféria.
A sede precisou ser transferida, sem consulta prévia. E isso lhe rendeu ataques inglórios por parte de associados tão vigilantes quanto incisivos.
O Corinthians, internamente, mais parecia um vulcão em erupção. Duas correntes se formavam; a dos que viam o Clube como sendo o modesto Clube do Bom Retiro, que ali deveria continuar, e a corrente daqueles que queriam galgar os primeiros sonhos, sonhados sob a fulgurante luz do Cometa, em maio de 1910.
Venceu a segunda corrente, e antes que 1915 viesse, o contato com a Associação Paulista já estava travado. A desfiliação para com a Liga já estava em andamento. E, aproveitando esse vulcão, a anticorintianada tratou de promover aquele que seria o derradeiro golpe naquele “clubinho” atrevido. O que acontece em 1915 pode ser visto nos capítulos anteriores.
Em 29 de janeiro de 1915, por conta do rigor da fiscalização daqueles que o presidente Oliveira chamara de “caluniadores”, fez-se nova eleição.
Oliveira, porém, foi reeleito, “pela sua competência, esforço e modéstia na direção do Corinthians”.
Existe uma versão da história que atribui a estas rixas internas o fortalecimento de agremiações adversárias. Mas o fato é que o Corinthians aprendeu, na marra, a usar o veneno das crises como antídoto, e assim se fortalecia. O ano de 1915 é a prova mais que cabal disso.
Na noite de 1º de setembro de 1915 o Corinthians Paulista completava seus cinco anos de idade. Deveria ter sido uma Festa, como estavam acostumados a promover, com rojões no céu, cerveja aos associados, mas o que se via era um clube escanteado pelos figurões elitistas, que não tinha muito como fazer festa nenhuma. Imaginavam que o Corinthians Paulista sucumbiria, pelo desânimo, pela falta de oportunidades. Qual o quê!
Havia excursionado pelo interior, enfrentado todos os times da Associação, mantendo sua escrita de Timão invictamente. Ainda assim, naquela noite de aniversário, nem tudo eram flores. Naquela assembléia, que teria o ar festivo, o que se viu foi cobranças, “em casa que falta pão, todos gritam e ninguém tem razão”.
Oliveira tenta explicar onde havia ido parar as rendas das partidas, que viraram fumaça. Não havia caixa algum! O Corinthians, financeiramente, estava no rumo da falência…
Um empréstimo havia sido feito, sem consulta ao quadro associativo! Para piorar a situação, os móveis do Clube foram dados como garantia…
Associados que reclamavam de Oliveira eram atacados por serem faltosos, por serem inadimplentes. O caldo engrossava. Na noite do aniversário de cinco anos, o Corinthians fazia jus ao vulcão em erupção que sempre foi. Tudo se complicava.
Oliveira termina por pedir demissão. Seu vice, João Batista Maurício, assume a presidência. Os ânimos se acalmam.
Nesta oportunidade, o associado Galliano recorda a todos que, fazia cinco anos, aquele grupo de operários se punha a fundar o Clube. Um grupo bem menor do que aquele que se digladiava no dia do quinto aniversário, reunidos como que circunstancialmente, sem festejo, sem comemoração. Que o Corinthians merecia.
Sim, atravessava dificuldades, todos sabiam. Não havia nenhum dinheiro para comemorar coisa alguma! É assim que vem a proposta; “Que todos os associados presentes dêem um voto de louvor a todos os associados, inclusive aos ausentes, aos que não puderam comparecer à assembléia, a todos os jogadores e fundadores, e que esse voto fique registrado no livro de atas, para que um dia, se alguém se lembrar de ler este livro, fique sabendo o que tinha acontecido naquela noite de setembro, no 5º Aniversário do Sport Club Corinthians Paulista!“.
Todos se levantaram, aplaudiram, aprovando a proposta por unanimidade.
E por alguns momentos, aquela noite pareceu ter sido de Festa e confraternização.
E a História continua…